segunda-feira, 5 de julho de 2010

Do nada à esperança

“A esperança é a última que morre”. Esse dito popular traduz o que presenciei ao visitar as regiões devastadas pelas chuvas em Alagoas. Começo falando em esperança, porque não posso descrever o cenário de “guerra” sem crer no futuro e na certeza de que tudo será melhor, apesar de todo o sofrimento que o povo das principais cidades castigadas pela enxurrada está passando.

É a esperança que me fez olhar para tanta gente: homens, mulheres, velhos e crianças que perambulavam de um lado para outro, vivendo num mesmo tempo, vítimas de uma mesma época, órfãos da cidadania, ao menos temporariamente, desejando a mesma coisa: um rumo, e mesmo assim acreditar na força de cada um deles. É a esperança, ainda, que faz com que mulheres, como Ana Correia, proprietária do mercadinho AC, que foi totalmente destruído, causando-lhe um prejuízo de aproximadamente R$ 700 mil, chore e, ao mesmo tempo, abra um largo sorriso carregado de vontade de recomeçar. “Já perdi tudo outra vez. É claro que irei recomeçar”, afirmou a comerciante com os olhos cansados de chorar.

E o verbo é recomeçar! Recomeçar do nada, do que sobrou de um presente que constrange o passado de tranqüilidade, paz, e prosperidade de muita gente. Recomeçar a vida, agradecendo a Deus a oportunidade de poder continuar, quando tantos morreram ou estão desaparecidos, engrossando as estatísticas da tragédia. Recomeçar apesar das perdas, como seu Juvêncio, um pequeno produtor rural que criou suas filhas e para uma delas construiu um salão de beleza. “Aqui minha filha colocou todos os sonhos dela”, afirmou com nostalgia. Do pequenino salão, erguido para promover a vaidade feminina, restaram apenas 4 potes de creme, quase alcançados pela enchente. Porém, longe de ser um retrato da tristeza, é um símbolo de resistência, como a afirmar que nem tudo está perdido.

Essa é a mesma sensação que tem seu Luis Vicente, um senhor de oitenta anos de idade, que viu sua esposa ser arrastada pela correnteza do rio. Com o resto de forças que lhe sobraram, ele organiza os restos de sua casa, reunindo tijolo por tijolo o que antes formava sua moradia e sua “vendinha”. Enquanto conversamos, ele, com um tijolo nas mãos trêmulas – não sei se de fome, cansaço ou medo, olhava para longe, como quem espera a vinda de alguém. Ele tem esperança de encontrar sua mulher e de recomeçar com ela tudo de novo.

Como ele, milhares de pessoas pretendem começar mais uma vez, reavendo o que é possível e continuando a sonhar. Para nós, que não vivenciamos na pele o drama dos primeiros instantes da tragédia, nem os dias que se sucedem como um cortejo infinito de promessas, os sonhos não passam de utopias e os problemas ganham uma dimensão infinitamente menor. Para a maioria dos sobreviventes, porém, continuar sonhando significa não deixar que a dureza da realidade mate a esperança.

Caminhando pelos escombros, digo-lhes que não há imagem de televisão ou foto de jornal que demonstre tamanha destruição. Portas, tijolos, telhas, crateras, podridão... Um odor não sobrepunha a vontade de agir e mesmo diante das sobras, uma jovem pintava as unhas e outra fazia o cabelo. Mas nem todos estavam assim...

Olhares perdidos, sonhos perdidos e tudo a refazer. Com a força das águas, vidas simples foram desfeitas para sempre. Do burburinho de uma pequena cidade do interior, onde o tempo parecia não andar, restou um grande silêncio, interrompido pelas máquinas ou pelas sirenes das ambulâncias. Pessoas espantadas, ainda surpresas por estarem vivas, observavam o cenário espantoso: em poucas horas, o que demorou décadas para ser construído não era mais nada.

Colchões, panelas, pratos, televisores, geladeiras, carros, porta-retratos... Um relógio marcava para sempre a hora que podia ter chegado. Tudo foi arrastado, tudo perdido, menos a confiança em Deus. Para dona Luiza Silva, lavadeira há 30 anos, “se Deus quis assim, o que há de se fazer, a não ser confiar?” O clique de minha máquina não foi capaz de pegar a emoção de sua fala. Seu rosto pálido denunciava que estava com fome há horas.

Atônito, também observei crianças sentadas em cima de sacos de roupa. Como sentinelas, guardavam, quem sabe, o único bem material que possuíam. Onde estavam seus pais? Não os vi. Saíram para buscar ajuda ou partiram para nunca mais voltar? Não sei. Vi ainda, mulheres caminhando com cartas nas mãos. Para onde ir se não havia mais endereço? São retratos de histórias que não terminaram.

Além disso, como a vida de muitos, pontes foram levadas pela enxurrada e hoje o acesso em diversos trechos é tão perigoso quanto no dia em que tudo ruiu. Será que para eles só resta esperar, semelhantes a pedintes que nas estradas estendem a mão em busca de migalhas? O pouco que tinham dava para sobreviver, para manterem-se em suas localidades. Mas, e agora? Para muitos, não resta mais nem o medo: desconhecido o perigo, muitas pessoas respiravam a poeira contaminada e andavam descalças na lama, em busca de alguma coisa que pudesse recuperar.

E como o medo anestesia a alma, eles partem para onde tiver uma pontinha de esperança. Em abrigos, vi famílias reunidas numa mesma dor, lutando pelo pão, tanto quanto lutam pela água, pelo material de limpeza, por roupas que possam aquecê-las da noite fria das serras de União dos Palmares.

De pés firmes eles caminhavam... De onde vêm? Para onde vão? Se para ficar e recomeçar exige coragem, caminhar exige disposição. Entre os escombros, caminham todos que pretendem muito mais que abrigo, água e comida: querem voltar a viver como cidadãos, resgatar suas histórias e voltar a ter uma vida normal. Querem voltar a rezar na igreja matriz, a sorrir dos causos do interior e olhar o tempo passar pela janela, calmo como o rio que um dia os deixou sem tempo de salvar tudo o que haviam construído.

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